quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Menino Jesus dos Abjetos

Os magos do oriente viram no véu noturno a estrela anunciata,
mas não eram magos, e não vinham eles do oriente:
uma delas era travesti, o outro, um transexual, 
e a terceira, prostituta.
Cada qual em seu oriente marginal, viram a estrela
que deixava um arco de cores na órbita cósmica.
E reconheceram no céu a redenção
que não encontraram nos templos e arranha-céus da cidade.
Enquanto seguiam a estrela, n’outra parte da cidade
completava-se o tempo para a Mulher e seu esposo.
Não encontraram lugar para a sua indigência.
Havia, porém, nas proximidades, um abrigo
de pessoas provadas no fogo da intolerância e da violência,
expulsas da segurança familiar e da consolação religiosa:
Excomungados. Bruxas. Aberrações. Transgêneros.
Estando abertas as portas, entraram Maria e José.
A Criança ali nasceu.
E todxs ficaram encantadxs,
suas faces resplandeciam como anjos sem sexo que descobriram o amor.
Nesse momento, entraram os magos – ou divas – que seguiam a estrela anunciata.
O transexual foi o primeiro a adentrar o abrigo.
Estendeu a mão para o céu, como se apontasse a estrela
e recolheu dela a cauda arco-íris que se tornou uma manta para cobrir a Criança.
Em seguida, a prostituta acolheu Deus em seus braços, comovida, e o amamentou.
Por fim, chegara a travesti,
carregava a sua frente uma carriola manchada com o sangue dos inocentes,
e repousou a criança no berço improvisado que trouxera.
Antes de dormir, vendo diante de si tantos olhares amorosos, aquele Deus encarnado, aquela frágil criança de muitos pais e mães, sorriu seu mais gostoso sorriso de bebê,
e todas e todos louvaram a Deus às gargalhadas que se misturavam às lágrimas da compaixão.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Metafísicas antropofágicas


Fora do corpo não há salvação:
decifra-me ou devoro-te!
A minha carne é verdadeira comida
e no fim, seremos consubstanciados
como nos sonhos do ameríndio guerreiro.
Devora a minha carne que é sua.



segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Antes que termine o dia

Não reconhecerão o quão denso era a treva que pairava em mim.
É uma noite sem fim, apática à qualquer luminosidade.
Sou como o limbo a girar freneticamente numa bússola sem norte,
a carência de sentido encarnada em solidão.
Não me perguntem: "tudo bem?" Direi que sim.
E fingiremos todos acreditar um no outro.
Não diga que Deus há de me valer, ele não virá...
A minha solidão é um ermo habitado por pessoas alheias
que observam passivamente os vitrais foscos de um templo em ruínas.
Eu sou o templo em ruínas.
E tenho a carne lacerada pelos cacos dos vitrais.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Cheiro Bom

Três cheiros desencadeiam em mim sensações de prazer:

O cheiro de terra molhada pela chuva;
O aroma de uma refeição caipira;
E o cheiro nato do corpo de quem amo.


O cheiro da terra molhada me acalma a mente;
O aroma da comida da roça me transporta para infância;
E o cheiro do corpo amado me arrepia.


Embora nenhum deles dependa de mim,

(O primeiro depende da precipitação;
O outro, impede-me a geografia;
E o último se perdeu no tempo),


Habituei-me a desejar mais do que exige a necessidade:

O cheiro de terra molhada pela chuva continuará a me acalmar sempre que chover;
O aroma das refeições caipiras continuará a alcançar o cérebro antes do estômago;
E o cheiro do corpo – mestiço, suado, despido – continuará a povoar minhas memórias.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Dança Sagrada ou Cópula dos Deuses


Um corpo dançante, de sentida leveza do ser, um corpo a bailar sobre o meu desejo
aproxima-se, velado pelos aromas que exalam das flores de um ipê.
As pétalas caem, esvoaçam em meu imaginário, o corpo se contorce:
o meu, de tesão; de tensão delirante. Geme.
O seu, da beleza e frescor de tua carne.
Você sorri. E teu sorriso acende o universo que me prende à pele.
Mas nada me circunda além da melodia dos pés que tocam suavemente o chão,
o cintilar baixíssimo da pétala do ipê que cai.
O meu coração, este sim ensurdecedor, engasga-me a garganta, estilhaça o peito. E saliva a boca da seiva que lhe escorre os lábios.
Será Vênus? Será Marte? E que me importa?

Hei de morrer do mesmo amor.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Meu ipê

Em êxtase de cores prenunciam os ipês a primavera.
Caem folhas,
eclodem as flores
e a cidade se pinta em mil tons.
Meu coração é um pé de ipê.
Ele flori ao primeiro vestígio primaveril,
flores de amor, de amor novo,
daqueles sentidos sem consumação.
Um ipê florescido degela a frieza de qualquer rigoroso inverno.
E meu coração-ipê não cabe em mim,
ele avistou a incidência de um sol que me abraça
no célere equinócio do teu dia,

átimo exato da minha noite.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

A Criação de Raíra


Diva disse: “Façamo-la à nossa imagem e semelhança”.
Diva criou a humanidade à sua imagem; criou-a à imagem de uma Deusa, feminina e masculino a criou.
Então Diva formou a mulher do barro preto da terra ginecopogênica,
inspirou-lhe nas narinas o cheiro de terra molhada e fecunda
e a humanidade tornou-se vivente.
E Diva disse: “Não é bom que a mulher esteja só”.
Então fez vir sobre a mulher uma tesura na relva noturna,
ela se masturbou e adormeceu.
Tirou-lhe, pois, da vulva a carne que formou o homem.
E apresentou-o à mulher.
Ela exclamou: “Carne da minha carne”!
Por isso deixará a mulher ou o homem os seus antepassados
e se unirão entre si,
e serão uma só carne,
e uma infinidade de desejos.
Mulher e homem estavam nus, mas não se envergonhavam.

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Olhadelas

Aprecio quem me olhe nos olhos,
sem hostilidade, sem censura.
E se os olhos se comunicam com os meus,
ai, meu bem, liquefaço,
faço gosto de ver.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Paixão maternal

De teu ventre fecundo, mulher, gera-se vida.
Paixão maternal de uma sublimação contínua
a oferecer ao divino tua carne morena.
Invejam-te muitos homens,
de falos femininos concebíveis,
do êxtase da maternidade escrita
e outra vez reescrita no corpo erógeno
de tua mística.
Liberta-me pela tua parição
da vulnerabilidade que esteriliza
toda maternidade masculina.
E me faz mulher.
Gera-me puta, gera-me mãe prodigiosa,
concebe-me, contudo,
o feminino sagrado da tua sedução.


sexta-feira, 5 de maio de 2017

Meu Emaús

Quando criança amava um Deus metafísico
como um filho ama ao pai.
Cresci. Amei o Cristo.
Mas lhe amei como um súdito a seu rei.
Agora, no desabrochar de minha juventude,
na minha vadiagem piedosa
e na minha viadagem altruísta,
amei a Deus como homem,
amo o Cristo como quem ama

um homem.

Oxalá eu seja expulso do paraíso

Oxalá eu seja expulso do paraíso,
longe da companhia de santos
e de virgens.
Pudera eu ser condenado à loucura,
ser relegado ao leito dos amantes da agonia,
da sem-vergonhice dos versados em saber.

Alguém que me estenda a mão neste breu?
Onde estão as vozes que apunhalam,
os arautos da verdade [que] não muda?

Oxalá eu seja,
não está em mim ser outro alguém.
Não procurem por mim na fotografia do passado
ou nas marcas do corpo que veem
nem sequer nos cabelos desgrenhados,
quem me dera não ser imaginado por ninguém.

Alguém que me estenda a mão neste breu?
Rasurei os meus afetos, não irei descolorir meu coração.
Eu não. Eu não.



segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Sagração

Era uma tarde chuvosa de fevereiro,
a janela aberta revelava um céu alvacento
enquanto escutava melodias suaves de piano e flauta.
Uma poetisa apareceu-me de repente. Uma senhora nascida num final de primavera.
Conversamos. Ela declamou-me poesias e, como mágica, as palavras tinham cores e sons.
Eu disse a ela que seus versos me falavam de Deus. Confessei-lhe também que a poesia é mais redentora que os dogmas da religião.
A senhora sorriu um sorriso interrogador aguardando a minha explicação.
Respondi que os dogmas são sempre certeiros. Infalíveis. Escritos por teólogos que sabem definir o Mistério.
A poesia não. A poesia não define o Mistério, a poesia o torna sagrado. E em seguida o lança nos ares do imaginário.
Os teólogos sangram a vida com preceitos. Os poetas, ah, os poetas sagram a vida que o teólogo sangrou.
Então a senhora dos versos sagrados se lançou no desconhecido de minhas próprias palavras e desapareceu.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

O corpo nu

Ofendem-se com a corporeidade.
A carne, temerária, é algo a ser evitado.
O nu não me reflete o sofrimento humano,
a transparência do meu coração.
O nu, dizem, denota a exacerbação do desejo.
E desejar é perigoso,
faz do corpo ocupações de afeto:
alguém que abraça
e que beija.
A religião se esqueceu do corpo,
preocupada que estava com a saúde d’alma.
Protegida em suas indumentárias.
Olvidam-se que a primeira circunstância para amar
o corpo materializa.
Mas num mundo de corporeidades alienadas
o nu é subversão.
Cubra-te, pois, ó Cristo, a carne crua.


terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Saudade e carestia


No amor há sempre uma saudade.
Carestia do ato de amar.
Se se está perto, saudade na distância que há na proximidade.
Uma distância voraz incessante.
Se longe, saudade da contemplação,
saudade da consumação de corpos na unidade,
abreviação da distância insistente.
No amor há sempre uma saudade e carestia,
um querer a mais,
um querer...
mais.

Sonhar-te-emos


Sonhar-te-ei desde o alvorecer da juventude, 
entre os cantos das aves matinais e o jardim orvalhado da noite.
Sonhos prenhos de desejos intimados 
do gozo dos tempos infindados no teu beijo,
mas de sonhos também violentados,
como as perdas imprevistas,
como o coito forçado. 
Sonhar-me-hei ausente da felicidade, 
porém, sem sentir tristezas; 
o momento é o que há.
É como o céu ou o inferno, que me importa,
se é na lida que faço e me desfaço a vida inteira?
E os sonhos... Ah, eles deliram as gentes. 
Deus o sabe.
Antes que o Verbo se fizesse carne
ele foi sonho.
Talvez ainda o seja. 
Só que agora sonhamos juntos 
e os meus sonhos movem o mundo.