domingo, 18 de dezembro de 2016

Vinte e nove

Fui encontrar-me a mim
em um encontro atemporal,
numa estação sem plataformas,
em meu terreno sem local.
O eu que era e agora jaz
e o eu que aqui se faz.
Passado e presente diante de si,
sem quaisquer dizeres, apenas um encontro de olhares.
Quanto daquele me pertence ainda ser
e quanto de mim se perdeu comigo?
Vi descer uma criança em corpo de homem feito.
Trazia fogo nos olhos e sonhos no andar.
Não hei de afirmar que hesitou ao me ver amarrotado,
de sonhos torcidos como as roupas de lavadeiras de rio.
Apenas um reencontro de olhares,
uma parada prévia para um café sem prosa
e o abraço íntimo entre um homem e um menino
que ‘sendo’ me sonham seguir.

domingo, 20 de novembro de 2016

Novembrosas

Desce o poente entardecido por novembrosas precipitações.
E impotente se afiguram as palavras benfazejas que renovam a esperança
ao aterrado desconsolo de minh’alma desarmada, desamada, talvez.
Queira morrer-me um pouco mais por esta noite,
absorto em fantasmagorias da religião.
Se em tua taça houver um pouco mais que amargor,
oferece-a à insaciedade de minha sede.
Abranda a secura que me aflige.
E, incauto, vem tragar minha paixão
no poente infindo em que vivi.

domingo, 9 de outubro de 2016

O teu silêncio

O teu silêncio me ensurdece de saudade.
A memória insiste no perfume de instantes
abreviados por uma fronteira que nunca existiu.
E quanto a mim, perdido estou em sonhos flutuantes,
recostado à cabeceira, numa noite de lua minguante.
Meu coração míngua também, ele apequena
e a saudade só aumenta.
O teu silêncio, eu quereria no instante de um abraço.
Mas o silêncio é a presença de tua ausência.
E eu nada poderei.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Miudezas

Meu amor é um pássaro pequeno, daqueles miudinhos,
voa e pousa em qualquer lugar,
sem pressa e ambição alguma de ficar.
Um dia encontrei um amor, ele não me devolveu minha beleza.
A melodia que cantava, com o tempo,
entristeceu por ficar num mesmo canto.
Meu amor, esse pássaro pequeno, muitos desejaram deformar,
transformar,
reformar.
A miudeza era feiura. Não era beleza.
Não entenderam que feiura e beleza são aspectos da mesma arte.
Eu, porém, sou poeta dos contrários,
profeta dos caminhos tortos.
Sou um amante de miudezas.
Que a primavera me assopre seus ventos,
aromas diversos de amores,
eu irei.
Meu amor. Adeus.

domingo, 18 de setembro de 2016

Toda reza


O que o tempo levou de mim para que eu seja interrogado
como quem cometeu grave pecado?
Pecado não cometi; sinhá Maria sabe dizer.
Teu menino me trouxe arte, arteiro eu quero ser.
Vou brincar com as palavras, com a seriedade que merecem,
como correr pelado com tudo à mostra,
no quintal de casa, na roça,
só para as primas entreter.
A vida endurece se a gente se adulta. 
Se se esquece a flor do ipê.
E o tempo, injuriado, é porque a eternidade chega em instantes,
a gente prova um pedaço e esquece dele, o tempo.
Foi assim quando beijei o menino e a menina,
o tempo não existia.
Não tinha mais as rezas de mãezinha,
e nem o medo do morrer.
Acho que toda reza devesse ser assim,
feito um beijo. Sem ditos corretos,
somente um sentimento vivido que ninguém entende se a gente diz.

domingo, 11 de setembro de 2016

Refração


...E quando, por ventura, 
eu não me reconhecer
no mesmo espelho em que me vejo,
surpreenda-me;
olhos vedados por suas mãos.
Irei tatear a sonoridade de sua voz
até encontrar os contornos de seu rosto.
O sorriso seu, escancarado,
que me desperta uma quietude indefinida,
despertará segundos de paixão,
uma imagem refletida em meus sonhos sem nenhum pudor.
Ainda que imagem refratada na distorção do meu querer.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Credo

Creio em Deus Pai Todo-poderoso...
– Não. Não me importa a potência divina,
aliás, creio que Deus não carece de tal afirmação.
Sigamos. Criador do céu e da terra...
– Empiricamente falando?!
E em Jesus Cristo, nosso Senhor...
– Olha, o sistema de vassalagem faliu há séculos,
esse Jesus entendo melhor como aquele menino arteiro de Alberto Caeiro.
Que foi concebido pelo Espírito Santo. Nasceu da virgem Maria...
– Será que ela... digo... hã, pra que tanta medicalização da sexualidade?
Padeceu sob Pôncio Pilatos.
Foi crucificado, morto. Sepultado.
Desceu à mansão dos mortos. Ressuscitou no terceiro dia.
Subiu aos céus. E está sentado à direita de Deus Pai...
– Arreparando bem, são jogos de linguagem bem articulados, não é verdade?!
Donde há de vir para julgar vivos e mortos...
– Cansei-me de julgamentos, cumpadre. Do inferno e do céu também.
Acho que cada um deveria cuidar da sua vida ao invés de vestir uma toga no Deus e lhe conferir as desgracenças eternas do julgamento.
Creio no Espírito Santo. Na santa Igreja católica...
– Hã? Nada não. Pensei alto...
Na comunhão dos...
Antes que todos concluíssem com o “amém”, encontrava-se ele fora do templo, sentado no sexto degrau que leva ao coreto, rezando a poesia de Caeiro.

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Nascituro

Nascituro concebido sem pecado,
concebido com amor e gerado pelo gozo de noites findas.
Nascituro à espera da luz que o guiará ao desnascer.
Outra vez.
Ei-lo aí, eu, feto de sonhos prenhos de mim,
Antropófago insaciável do existir,
suga o cordão da humanidade até a secura.
Suga toda a humanidade para ti, é tua,
Nascituro.
E, se o tempo lhe for encurtado,
que não te informem do fim
para que vivas a intensidade que lhe apraz
na luz
ou
no ventre da terra.

domingo, 15 de maio de 2016

Coroação

Mês de maio. Em muitas igrejas, ao final da missa se faz uma homenagem a Maria. Coroação. Uma pequena trupe infantil vestida de anjinhos entram cantando um canto antigo até o altar montado para o momento. A imagem da santa fica no topo e os anjinhos se colocam em volta. De par em par, vão cantando suas estrofes e em seguida, depositam um símbolo: flores, um coração, um véu (se for mulher) e a coroa na imagem da santa ou do santo homenageados.

Na minha infância em Coroaci, fiz muitas coroações de Nossa Senhora, do Sagrado Coração de Jesus e da Senhora Santana, a padroeira. Dona Nigrinha organizava as coroações, preparava e ensaiava as crianças. Em todas elas, dona Nigrinha me encarrega sempre das flores ou do coração. Nunca depositei a coroa... será que pequei, tão criança que eu era, por querer demais algo assim? Mas também nunca pedi para mim a função de coroar. Se eu voltasse no tempo e tivesse a chance de falar sobre isso com o menino que fui, diria a ele – eu – que no futuro me sentiria muito orgulhoso por sempre depositar flores e o coração nas imagens dos santos naquelas coroações.

E diria mais a mim mesmo, diria que as flores me trazem à memória a beleza e a arte. E que o coração traz vida aos meus desejos e amores. Poderíamos ofertar mais? A beleza e a arte; o desejo e o amor é o que impulsiona a nossa humanidade para o futuro, marcas de nossa efêmera existência sobre a Terra.



domingo, 10 de abril de 2016

Passos

De quem são os passos que ecoam no escuro?
Passos que me soam feito identidades claras de seus transeuntes:
uns são apressados, bem espaçados em curto período de tempo.
Sempre com pressa ou ansiedade.
Há umas passadas irritantes, em que solas de pés e chinelos se atritam sem parar.
E outras, não menos irritável, como passos marciais,
têm pisadas duras como o retumbar de tambor numa aurora de campanha.
Alguns passos são faceiros, furtivos, pisam leve e com cautela,
têm outras intenções aqueles pés...
Passos cansados emitem um som pouco audível, nem leve nem firme é a pisada.
São passos arrastados, ora cortados por um baque metálico
ou sem locução.
De que são feitos os passos que passam no carpete da noite, ocultos pelo véu do breu noturno?

quinta-feira, 31 de março de 2016

Um outro que não eu

Um outro que não eu passou por mim,
ligeiro como a fase de uma lua.
Foi quando percebi o ar bucólico.
Apercebi-me numa fragrância de pinheiros
quando esse outro que não eu passou por mim.
Brincava com as palavras, a falar de céu e de terra
como quem fala da vida ou da lida com a mesma leveza na voz.
E então, passou por mim, abraçou-me e foi-se embora.
Saberás por ventura, que meus olhos brilhavam silenciosos e risonhos
quando tu, este outro, exalava as suas palavras?

quinta-feira, 3 de março de 2016

Linguagem infantil

          Minha sobrinha ainda pequena aprendia a formar as suas primeiras frases quando a vi pela última vez. Ela tinha seu próprio vocabulário. Uma frase ficou inesquecível em minhas lembranças, ela dizia:”uendo, uendo, uendo?”. Tradução: o que você está comendo? O tio não comia nada sólido, apenas simulava a ação para ouvi-la perguntar; o que o tio comia naqueles momentos era a delicadeza de suas singulares palavras, livres de toda regra gramatical das pessoas grandes, pois pertencia somente ao seu vocábulário pessoal. Cada vez que eu a ouvia perguntar em seu idioma infantil, deliciava-me com a singeleza da infância e me sentia novamente, um pouco pessoa pequena também.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Dogmas e poesias

O céu é um lugar chato, disse um dia o Rubem...
É, também acho – diria a ele.
Um lugar monótono.
O que eu quero é a terra,
a música que arrepia a pele,
o sabor da comida de mãezinha,
a excitação gostosa do corpo alheio,
o aroma úmido do solo regado pelas chuvas,
e a sofrença do amante de alguém.
Devolvam a Deus o humor que lhe é bendito,
o seu deleite sobre a criação.
E que não se faça Dele as rubricas dogmáticas nossas...
Nem me falem com horror da monotonia do céu ou das diabruras do inferno
porque não quero dogmas, quero poesias.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Alada rebeldia

Deixe para mim uma janela aberta,
não te preocupe com a porta fechada.
Não terei prazo para entrar ou sair por ela.
Se me amas, peço apenas que eu seja livre para partir.
Se me amas, teus calorosos sentimentos deixarão rastros caso eu me perca de mim,
ajudando-me a recompor o meu ser,
e então, nos encontraremos em algum momento no tempo,
envoltos em saudades.
Pois quando me encontro nos horizontes da tua saudade,
vejo-me como o amante inalcançado, um fato não consumado.
Deixe para mim a janela aberta,
que a minha alada rebeldia tem nomes,
e a quem queira saber,
chamam-lhe amor e liberdade.

sábado, 16 de janeiro de 2016

Solidões

Na pequena cidade, no silêncio noturno e pacato,
quase fantasmagórico e solitário de suas ruas,
não há quem caminhe por entre elas,
cada qual se refugia entre os seus muros de concreto.
Solitária condição fortuita ou não,
as pessoas vão-se embora, migram pelo mundo a procura de si.
Vilas de campos verdes e pastos,
de fortalezas-morros e estradas curvilíneas,
habitados pela simpatia de seus concidadãos,
uma hospitalidade com aroma de café,
solidões acompanhadas de broas e pães de queijo.
Solitárias são as margens de rios que secam aos poucos,
que surpreende um filho que outrora não alcançava as suas ‘funduras’.
Solidões somos muitas entre as matas, o canto do canário, a chuva fininha a cair.
História e sabores das Minas em mim veladas pelas areias do tempo em nós.